Cruzei
a garagem com uma mala pesada na mão esquerda. Meu pai vinha logo atrás com
mais algumas sacolas. Propositalmente, deixei o braço direito livre para
cumprimentar os que estivessem pelo caminho. Estalei os dedos para um cachorro branco
e pequeno que eu nunca havia visto. Ele tinha uma única e charmosa mancha preta
que, generosamente, contornava o olho esquerdo. O bichinho atendeu
simpaticamente ao meu convite e bateu com as patas dianteiras no meu joelho
enquanto abanava o rabo.
Continuei a caminhar até chegar próximo a
porta de madeira. Esperei encontrar na sala quem sempre costumava. Minha tia
estava por lá, com um sorriso default. Eu a cumprimentei com um semi-abraço com
meu braço direito, especialmente livre para essa finalidade. Seguindo, uma
troca de perguntas padrões, respostas padrões, e eu me convidei a entrar.
Era
uma sala de visitas: Uma mesa de centro de madeira com apoio de vidro e dois
sofás brancos dispostos num vértice comum, a minha esquerda. Esse cômodo
intermediava o acesso à sala de jantar, e sua bem trabalhada mesa de madeira, e
a sala de almoço, com uma mesa pequena, comum, dessas que não despertam tanta
curiosidade. As paredes de toda a casa eram brancas com grandes janelas de
madeira rubra. O acabamento e mobilha eram de muito bom gosto e bem distantes
da realidade do meu minúsculo apartamento.
Tudo
fluía num conformado cinza, até que, sem aviso, deixou de ser.
Ao
cruzar o perímetro do recinto, eu a vi.
Meu
coração se golpeou no que, para mim, foi um único pulso intenso que o encheu de
sangue como um soco no peito. Olhamo-nos tão veementemente que penso que se
algum desavisado cruzasse a linha que conectava nossos olhos, ele seria,
desavisadamente, fatiado.
Foi
uma troca tão curta quanto intensa.
E,
então, eu pude ver, a poucos passos de distância, os olhos brilhantes e a
beleza que amigo nenhum explicaria, mesmo sob a pena de uma dose de Blue Label.
Os cabelos castanhos que se deleitavam sobre si mesmos e sobre os ombros. O
contorno do corpo era morno e chamava por minhas mãos.
Senti
vontade de perdoar todos os meus inimigos.
“A passos firmes, cruzei a sala na
direção da pequena moça. Os pés, solidamente, golpeavam o chão, decididos a
alcançar o que estivesse no final da reta. E respirava. Durante o curto
percurso, as mãos se ergueram num movimento suave e preciso na direção do rosto
de Ana.
E eu a beijei, profundamente, como
se pudesse ouvir o som da água cavitar de sua pele. As pontas das unhas
atritavam sobre a pele ‘branca como neve que cai’.
... E tudo fluía num excitante
vermelho, quando, sem aviso, deixou de ser.
Ao olhá-la nos olhos o conto
desandou a ruir. Sua imagem se tornara translucida. Pude ver os contornos do
carpete por através de seu corpo. Pelo tato de minhas mãos, senti como se ela estivesse, gradativamente, se misturando ao ar.
E o coração de Ana ardia numa
hipnotizante chama vermelha que o envolvia com uma manta de algodão. Um brilho
forte que o destacava da lívida projeção de seu corpo... Levantei minha mão
direita e, timidamente, o toquei...
A vontade da chama, num estalo, inflamou a ponta
de meu médio e passou a consumi-lo indiferentemente, como se não estivesse
sendo observada. Ao chiado perturbador de pólvora a queimar, uma fumaça incandescente se espalhava, convidando a arder outras partes
de mim.
Em choque, me afastei de Ana, ao
ver meus dedos, um a um, e, seguidamente, minha mão, tonarem em fumaça como um
enorme pavio. Tão rápido quanto uma única inspiração, a frente de chama já
avançava por meu pulso e antebraço, num estágio que se portou como um marco
dessa tragédia, onde, ainda mais rapidamente, parte por parte, todo meu corpo
se sujeitava a queimar.
A chama percorria minha pele como
soldados nas areias da Normandia, deixando um inferno para trás. Tomei uma
expressão impotente, indignada, que brilhava num intenso e oscilante tom de
prata, enquanto a fumaça branca tomava conta do recinto, do teto ao chão e por
todos os lados.
A nuvem migrava para outras partes
da casa pelos vãos das portas. A capa que cobria o sofá se enrugava sob o intenso
calor. Todo o chão ficara
salpicado por milhares de pontos pretos onde as fagulhas de pólvora, ainda a
arder, se depositavam. A atmosfera era asfixiante e fazia ferver a garganta. Meus pés deixavam pegadas pretas enquanto eu agonizava. Meu corpo se despedaçava e desmoronava sobre a própria estrutura, como uma
árvore incendiada por mil sóis.
Em poucos segundos, um coração
solitário, envolto por fogo vermelho cintilante, perdido em meio à sufocante
fumaça branca, foi tudo o que restou daquele encontro.
E eu desapareci no ar, sem deixar
cinzas, como jaz minha esperança.”
“Essas alegrias violentas têm fins
violentos. E falecem no
triunfo, como fogo e pólvora, que
num beijo se consomem.”
W. S.
§
A inspiração deste texto nunca o leu... Certamente
nunca lerá.
Outubro e novembro de
2011